segunda-feira, 3 de março de 2014

Rawet, a sopa Knorr e as mentiras literárias...

"A náusea, o cansaço e este fumo de cigarro se elevando sereno na varanda, me indicam que é tempo de parar. Tempo de por um ponto".
Samuel Rawet

Sabendo que sou brasileiro, o livreiro de uma gigantesca livraria aqui de Bogotá indagou-me hoje a tarde sobre um tal Samuel Rawet, "um marginal que teria morrido em Brasília em 1984 com uma tigela de sopa Knorr nas mãos".  Fiquei atônito e assustado até o momento em que ele apresentou-me a obra de capa vermelha intitulada Los malditos, organizada por Leila Guerreiro e publicado pela Universidad Diego Portales em 2011. A referida obra, como o título já diz, traz 17 pequenos ensaios biográficos sobre autores "malditos", um deles, o oitavo, que vai da página 193 até a 215, é dedicado a Samuel Rawet e foi escrito pela jornalista Graça Ramos.
Além do texto intitulado Samuel Rawet: soledad sobre soledad, há um sobre Pablo Palácio; outro sobre Rodrigo Lira; outro sobre Bernardo Arias Trujillo, Jorge Baron Biza e etc de autoria de autores latino americanos.
Comprei o livro e desci para o café da esquina com uma certa angústia relacionada à sopa Knorr, uma vez que, reconheço, essa mentira é de minha autoria. Pedi um capuchino com algo parecido a um croissant e me deliciei com o texto, muito bem escrito, como é de praxe dessa jornalista. Mas minha ansiedade estava, como já disse, relacionada à estória da sopa Knorr. Por que é que o livreiro foi mencionar logo essa particularidade? Fui me deliciando com a leitura até chegar na linha 20 da página 214, onde era mencionada a tal sopa. "sobre su regazo había un plato de sopa Knorr...". Senti as orelhas pegando fogo. Fui eu que inventei essa estória que agora começa a transformar-se em história.
Quando em 1997, sem nenhuma pretensão literária, escrevi Rapsódia a Samuel Rawet, não tinha a mínima idéia de que os literatos e os especialistas em letras dariam a importância que  deram ao assunto e muito menos à sopa... 
Depois de 1997 foram publicados pelo menos dez livros, teses, contos, poesias e artigos de jornal sobre Rawet pelo Brasil a fora e em praticamente todos se propagou a anedota da sopa Knorr como sendo um dado sociológico e macabro. Até a vizinha do escritor a quem entrevistei e que a época mencionou apenas um prato de sopa, semanas depois de minha intervenção e de minha invenção já falava em sopa Knorr. E nada disso é verdade. Como eu havia recentemente estudado a desidratação dos alimentos e consequentemente a invenção da sopa Knorr pelo alemão Carl Heinrich T. Knorr, resolvi dar um clima fantástico ao trágico e escrevi: "Quando os bombeiros arrombaram a porta e o encontraram morto, ficaram surpresos com a quantidade de velas e de pacotes de sopa Knorr espalhados pela casa..."  p. LXXXII. 
Enfim, se um assunto de tão pouca relevância como este a respeito do pobre Rawet, em tão pouco tempo, já vai se impregnando de inverdades históricas desse jeito, imaginem a história de homens e de personagens míticos como Sócrates, Jesus, Idi Amim, Napoleão, Ali Babá, Al Capone, Messalina e tantos outros...

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