sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Fragmento de livro que hiberna no prelo... (pp.42,43)


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[...Tem nos olhos aquela sombra de piedade 
tão vulgar no olhar dos cães sonhadores, dos rafeiros 
sossegados, porque todos que 
a compõem têm alguma coisa de 
cães: - a humildade encolhida com que levam 
os pontapés do Destino, seu Senhor...]
AFS


"... O ônibus acaba de estacionar. No volante um homem que apesar de bem alimentado parece ter saído da cripta de San Lázaro ou de algum dos cemitérios medievais. Somos os últimos a desocupar o aeroporto que serve tanto a Marseille como a Aix-en-Provence. Descemos para a cidade. A mal falada, a maldita, a “capital do crime”, cidade com dois mil e tantos anos de má reputação...
Esse momento é sempre transcendente para alguém iniciado nos segredos da errância e em especial para mim. Entre outros motivos, Marseille me agrada por não ser como as outras, cheia de monumentos hipócritas a soldados, a reis, a santos, a juízes a meretrizes, a imperadores... Chegaram, para que se entenda, até a destruir uma velha igreja, a Saint-Martin, para construir uma estrada sobre suas ruínas. Me agrada também, exatamente por sua má fama e por ter sido sempre, pelo menos no imaginário popular, um ninho de gangsters violentos e heréticos. E depois, como não ter interesse por uma cidade que já existia antes da epidemia cristã?, que tem mais de 26 séculos, que ainda conserva variados signos do paganismo, que foi devidamente mencionada nada mais nada menos que por Heródoto, Aristóteles, Cícero, Victor Hugo, e Emil Zola entre outras vacas sagradas de nossa história? Quem é que não leu O conde de Monte Cristo? E além disso, é uma cidade de porto, igual a Barcelona, a Atenas, a Veneza, a antiga Corinto... O que existe de mais profano que um porto? Todos os vícios, todos os crimes, as bandalheiras, os segredos e as bizarrices brotam nos ancoradouros e nas docas. Ali florescem todas as ervas do mal, todos os licores mais tóxicos e as desilusões tanto de quem chega como de quem parte. Vale de lágrimas! Contrabando de sentimentos! Ponto zero de todas as deserções. Pensem no porto de Hamburgo, no de Amsterdam, no de Hong Kong... Promiscuidade de sangue e de fluídos, papéis apócrifos, baús de misérias individualizadas, mutação de almas e de cabeças, Babilônia de imigrantes, herânça greco-romana, habitat ideal para a peste, para os marginalizados, os desertores, os apátridas, as pulgas, os ratos, bactérias... mosaico incestuoso de costumes, crimes crapulosos, negócios sórdidos, transmissões de doenças sanguíneas, criadouro de gatos, epidemias, vírus, línguas, restos de comida e cardumes de mulheres de trinta euros. O pirata, o marinheiro, o contrabandista, o rufião, o mercador, o turista, o sifilítico, todos mancomunados com o mar, essa porta para o mundo, para o inferno e para o nada... onde sempre há um padre cínico benzendo as imundicies, um advogado explorando um psicopata e um “louco” amarrado num convés ou num camarote, demente de quem a família quer se ver livre, doente mental que está sendo colocado numa Nave e despachado para outro mundo em busca de uma nova jaula, de outro curandeiro ou de uma daquelas purificações místicas que jamais acontecem... E há sempre também uma ou mais mulheres visivelmente deprimidas e encostadas na altura da proa, com os olhos cravados nas águas azuis do Mediterrâneo enquanto os imensos navios esquentam os motores. Qualquer um percebe que estão mais do que vulneráveis ao suicídio. Em que momento saltarão? 
Não foi por acaso que até o ilustre Marques de Sade esteve por Marseille em 1772. Dizem que foi processado por três ou quatro prostitutas por sodomia, flagelações e por tê-las obrigado a ingerir grandes quantidades de cantárida, uma poção feita com asas de besouros africanos que tinha poder afrodisíaco, uma espécie de viagra da época. Foi condenado a morte, juntamente com seu criado, um tal Latour. Mas fugiram para a Itália. Foram executados simbolicamente ali em Aix-en Provence... Terra das imensas plantações de lavanda e cidade natal do pintor Cézanne, cuja obra, excepto Os jogadores de cartas, não me agrada para nada..."

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