sábado, 29 de setembro de 2012

Rascunho: ANÕES... ou da pequenez humana...

Eis-me aqui, outra vez, numa esquina longínqua do mundo tentando, através de mais este palavrório repetitivo e vagabundo, empurrar goela abaixo de leitores imaginários outros disparates e outros foguetões de artifício travestidos de literatura
Ao chegar, no fim da tarde de ontem, vi escrito em chinês num dos caibros de aço de uma ponte sobre o rio Suzhou: Não há milagres! Só mesmo o fermento é que pode multiplicar os pães... Ainda bem!
Na primeira página de meu “breviário” de viagem releio o relato de um homem esquelético que falava de seu pai e de sua lambreta desgovernada que numa das tantas sinistroses diárias foram parar no meio das ferragens de uma caminhonete. - Sabe o que é ter que recolher os ossos do pai asfalto afora?... Sabe o que é recolher numa lata de querosene o cotovelo, depois os dedos e a rótula do joelho do próprio pai? No final de seu lamento filosofou: Ah, somos os únicos animais que sabemos em detalhes como será o final!
Um prédio nem novo e nem velho com um cheiro forte e azedo de cigarros levitando sobre os imensos tapetes vermelhos que se bifurcam por todos os corredores e por todos os lados... As lamparinas da época do ópio ou do tempo de Confúcio com certeza deviam ser muito mais originais... Todo mundo conhece o mau gosto chinês. Há também um lustre maior que uma roda de carroça no hall e na porta de um dos elevadores um singelo relógio que registra, além do tempo, a humidade, a temperatura e os dias... 16:19 horas do dia 17 de junho... Relógio: essa promiscuidade de engrenagens que só fazem lembrar o inexorável e engendrar defuntos... Chove em Xangai. Numa moldura de bambu sobre a cama o desenho desbotado e quase invisível de uma chinesinha pré-adolescente, uma verdadeira Lolita com seus joelhos delicados e seu leque vermelho em movimento convidando os forasteiros para ingressarem nos labirintos de seu inferno... ou de seu shangri-lá...
Era de prodigiosa bandidagem! De prodigiosa excrecência! Com a vida sem solução como a de Crane, ensaio estas primeiras linhas aqui no quarto 67 do Hotel Nanjing. Um hotel relativamente barato, com escovas de dentes, sabonetes e chinelos para os hóspedes. Quem é que ainda não ouviu falar em Xangai! Das seculares noitadas regadas a Papoila papaver somniferum e pelo Kama-Sutra! Cidade dos primeiros passos de Mao e do Partido Comunista Chinês! Fui à sua antiga casa, ali na rua Maoming, 120-5-9. Cheguei lá por acaso, pois não sou daqueles sujeitos que passam a vida debruçados sobre lendas, mapas, traduções, setas, símbolos mandarins... Viajo movido pelo faro e pelos instintos e sempre longe dos roteiros construídos para as massas... Tenho horror a mistificações políticas e problemas gravíssimos com todo e qualquer tipo de autoritarismo, chefe, pai-patrão, honrarias e até mesmo com aqueles que ostentam uma, digamos, legítima autoridade. Ao culto e à veneração de personalidades, então..., dedico o mais genuíno e verdadeiro dos ascos. Apesar dos dias e dos pesares ainda não me livrei da convicção de que todo Ser, na essência, é um incompetente e um zé banana sem nenhum atributo. O individuo idolatrado na rua – dizia Nietzsche em algum lugar de sua obra e com outras palavras – em casa, para sua mulher, continua sendo um bosta, um chimpanzé peludo e fedorento – Claro que os mais sonhadores e maníacos até podem realizar alguma notória façanha aí por esse vasto mundo, algum gesto de aparente grandiosidade durante seus setenta anos... Mas, ter que viver setenta anos!!! Uma grande marcha aqui, uma revolução cultural acolá... Um grande trambique  que o torne milionário! Chefe! Bandido! Eleger-se presidente disto ou daquilo! Mas a ponto de merecer uma estátua!? De ser canonizado? Embalsamado? Cultuado? Idolatrado? Que se crie um Instituto ou uma igreja em sua memória? Isso não! Nenhuma peregrinação nos deveria interessar mais que aquela ao fundo de si mesmo... Talvez não seja por acaso que este livro pretenda tratar apenas de gente pequena, de pigmeus, seres em miniatura, da pequenez humana... Um tratado sobre anões!
Lembra de algum? Quanto media o Mao? O Getúlio? O Chaplin? O Nelson Ned? Aquele pintor e narigudo francês conhecido por Toulouse Lautrec? E Giacomo Leopardi que tinha um metro e quarenta e que era corcunda, que morreu com quarenta anos? Teria advindo daí a obscura visão que proclamava sobre a vida? Ou nem precisa ser anão para intuir esse horror? Com quantos centímetros se descamba para a categoria dos pigmeus ou se eleva para a dos gigantes? Dizem que Mao comia sete ou oito mulheres por dia, que não escovava os dentes nem tomava banho e que no decorrer de tantas andanças e de tantas xotas foi, finalmente, agraciado com as erupções lunares e prepucianas de um herpes... Sabe-se que entre os que seus adversários denominavam a “gang dos quatro” era ele o fodão-mor... Era ele quem dava carta branca para seus fanáticos seguidores estapearem e pisotearem intelectuais, poetinhas, professores, artistas em geral e outros histéricos da China de então... Não posso negar que sempre que alguém fala em estapear intelectuais sinto um certo prazer. Reeducar ou reeducar-se! Haverá tarefa mais impossível do que esta? Melhor dedicar-se à quiromancia... De qualquer maneira, a Grande Marcha foi um show! Cem mil homens desvairados por todos aqueles quilômetros a pé e em farrapos deixando para trás muito alimento para os abutres. Nem sei se por aqui existem abutres. Não me refiro aos corvos do cemitério de Londres, nem ao condor das cordilheiras dos Andes, me remeto aos abutres brasileiros... aqueles que se fingem de mortos e de deprimidos no topo dos postes ou nas galharadas à beira das estradas... A guerra! As verdades! A mentira condensada em cartuchos! O que não faz o desejo de poder! E a ânsia de foder! No Brasil também tivemos uma Grande Marcha, a do Carlos Prestes e inclusive, bem antes da de Mao (1925-1927). Mais humilde e singela, de apenas mil e quinhentos homens... Não deu certo. Foram destroçados pelo caminho. No caminho haviam muitos pedregulhos – diria o poetinha mineiro. Um fiasco heroico. As milícias sertanejas dos latifundiários nordestinos abortaram com garruchas e paus aquela ideia quase religiosa e delirante de revolucionar e de salvar a pátria... Com certeza o velho comunista (que naquela época era jovem) ainda não sabia que o “amor” do cão é sempre e sempre para com aquele que lhe dá um osso ou um naco de polenta e não para com aquele que promete arrancar-lhe a coleira!!!  
Na pagina seguinte do “breviário”, recordo a mãe que acabara de ouvir de sua filha que, como os filhotes de tubarão, gostaria de tê-la devorado por dentro. Por coincidência ela já era uma mãe oca! De onde advém essa ânsia de carnificina? Como esquecer a prisão uterina onde se esteve confinado por mais que uma eternidade? É evidente que nesse lugar mais do que sombrio não é o calendário gregoriano que conta... Essa mesma mulher narrava um sonho repetitivo onde ratazanas imensas apareciam de madrugada para ingressar nos “galinheiros” e devorar os miolos das aves. Em algumas noites até vinte pintinhos e uma dúzia de filhotes de patos foram devorados. As velhas chocas investiam inutilmente sobre aqueles animais rabudos e asquerosos – dizia ela -, mas a mãe dos patos não... E comiam, como já disse, só os miolos. Que preferência macabra a desses ratos!!! E ainda há quem deles faça apologia...
Levanto os olhos para a China. Na calçada da frente, no meio da fumaceira, da gritaria, dos cheiros das frituras e da comilança em geral, um mendigo cego e bem barbeado executa em seu violino de duas cordas (erhu) uma melodia antiga, sabe-se lá de qual dinastia... Estranhos esses instrumentos. Um pedaço de madeira, duas cordas, uma caixa de ressonância tipo berimbau e um arco semelhante ao dos violinos europeus. Não sei se foi coincidência, mas todos os que avistei tocando esse instrumento eram cegos... Alguma relação entre as trevas e as sete notas ou as sete cores do arco-íris? Um ali na saída do metrô, outro sobre uma passarela, outro na avenida Naijing, outro nas proximidades do Museu, outro lá no meio de toda a confusão de uma ferroviária... Uma toalha velha sobre os joelhos para proteger-se da poeira do breu, alpargatas e camisa ao estilo de Mao, os dedos deformados sustentando o arco e aqueles dois ocos no lugar dos olhos voltados para as nuvens... Impossível ver um cego sem lembrar daquela minha tia, anã e cega, bem como do Borges, o argentino bibliotecário que num de seus poemas escreveu: "Yo que soy el que ahora está cantando seré mañana el misterioso, el muerto, el morador de un mágico desierto, orbe sin antes ni después ni cuándo..."



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