quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Uma visita de cortesia ao Sertão e ao Conselheiro 1


O ônibus clandestino que parte diariamente de Jerimuabo para Canudos oferece aos passageiros uma oportunidade única de reflexão sobre o sentido e a razão da vida. Noventa quilômetros feitos estoicamente em seis horas. Foram incontáveis as vezes em que o Velho Conselheiro e seus beatos fizeram essa travessia. O matraquear das ferragens, a poeira, a temperatura, o estradão cheio de caveiras, de pedras soltas e de buracos.

A cada cem metros alguém subindo ou alguém descendo com malas, caixas, sacos, baldes, galões e cheiros. A mais exótica foi uma negra com tetas esplendorosas que levava uma montanha de ovos caipiras. Vendeu quase todos a bordo.

Os fregueses tiravam magicamente sacos dos bolsos, escolhiam os ovos mais pontudos, os armazenavam cautelosamente, davam um nó no plástico e passavam o resto da viagem equilibrando-os sobre a barriga ou sobre os culhões. Em alguns momentos éramos uns cinquenta passageiros sentados e uns cinquenta em pé. Aquela lataria velha continuava deslizando por sobre as pedras soltas. Todo mundo falava ao mesmo tempo, ria, tossia. Uma família inteira espalhava gripe para todos os lados do sertão. Numa das primeiras poltronas instalaram uma velha paralítica que, a cada parada brusca ficava por uns instantes coberta de poeira.


Cabritas delicadas por entre as trincheiras perigosas da macambira. Casebres e vilarejos cravados no meio da caatinga, da poeira e bombardeados pelo sol, um sol verdadeiramente maligno, o mesmo que Euclides da Cunha, nos quinze dias que passou por aqui, dizia que era um inimigo a quem se devia evitar, iludir e, principalmente, combater.

Ezio Flavio Bazzo

Um comentário:

  1. curioso. realmente o modo como nos movemos no espaço determina quem somos. um hedonista jamais refletiria a vida a partir e desde um ônibus. somente um estóico o faria. e, ainda o tomaria como o próprio movimento da vida. penso que qualquer idéia religiosa só é possível de ser concebida e mantida dentro de um ônibus, ou de um pau-de-arara, ou de uma van, ou em cima de um jumento, ou ainda, no ódio contra a poeira que adora se acomodar em nossos orifícios.

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