quinta-feira, 30 de abril de 2009

Um simples virus como incentivador de leitura


Na fila imensa que todas as manhãs se forma ao longo dos muros do ambulatório uma menina graciosa lia A CABEÇA DE HIDRA, do escritor mexicano Carlos Fuentes. Não resisti a pulsão de indiscrição e lhe fiz uma pergunta qualquer sobre o que estava lendo. Confessou-me que havia sido incentivada pelo virus da gripe no México, por aqueles seres desesperados e impotentes atrás de suas máscaras e por aquela solidão terceiro mundista. Que havia sido aquela desordem geneticamente latina que a conduzira para a literatura mexicana.

Que surpreendente! Pensei. Enquanto os governos com seus intragáveis livros didáticos e os professores com seu mau humor continuam fazendo as crianças odiarem a leitura, um simples virus suíno tem o poder de incentivá-la!

A menina estava tão radiante com a leitura que me pediu para fazer-lhe o favor de ouvir um pequeno trecho. Sentei-me a seu lado e ela leu calmamente e com uma dicção perfeita: “ Cortés converteu Malintzin duas vezes: primeiro ao amor; em seguida ao cristianismo. Foi batizada de Marina. O povo chama-a Malinche, nome da traição, voz que revelou aos espanhóis as ocultas fraquezas do império asteca e permitiu a quinhentos aventureiros ávidos de ouro conquistar uma nação cinco vezes maior que a Espanha. A pequena voz da mulher derrotou a grande voz do imperador”.

Ezio Flavio Bazzo

terça-feira, 28 de abril de 2009

Yo también fui un espermatozóide


Crítico e admirador de minha “obra”, um intelectual de renome e professor de filosofia da Unb retornou de Buenos Aires trazendo-me um presente pouco comum neste parnaso futebolístico brasileiro: oito livros do escritor argentino Dalmiro Saenz. No momento estou terminando de ler Yo también fui um espermatozóide, os outros, que faço questão de mencioná-los abaixo, estão ávidos e ansiosos na lista de espera.


1. Sobre sus párpados abiertos caminaba una mosca.

2. Acordate de olvidar.

3. Cuentos para niños pornográficos.

4. Carta abierta a mi futura ex-mujer.

5. NO.

6. ESE.

7. Las boludas.


É de Delmiro Saenz a frase: “Nada se parece mais a un fascista que um burguês assustado”.


Ezio Flavio Bazzo

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Os porcos com seus vírus e as Multinacionais com seu Tamiflu


Ao longo de nossa tumultuada história já tivemos que haver-nos com os ratos, as pulgas e a peste bubônica; com as vacas loucas; com os mosquitos da dengue, da malária e da elefantíase; com os caramujos e a esquistossomose; com os carrapatos e a febre maculosa; com o Sarcoptes Scabiei e a sarna nos pentelhos das madames; com os morcegos da raiva etc. Agora entram em cena novamente os porcos e a gripe suína. É oportuno lembrar que os porcos já atormentaram a civilização com a Taenia Solium e com a Saginata.


Depois de uns bons tragos, tanto o espírita residente na mesma quadra que eu como seus obsessores parecem não terem dúvidas de que essa possível pandemia é apenas a vingança dos porcos. Um acerto de contas dos suínos com a humanidade pela matança que estes vêm sofrendo pelos séculos a fora, uma espécie de taxa extra sobre as feijoadas, o bacon, as costeletas e os pernis.


Que esteja surgindo exatamente lá na Cidade do México, - enfatiza - não é de se estranhar, pois foram os astecas os primeiros pré-colombianos a sacrificarem o javali (o porco selvagem). Apesar do animal mais sacrificado e mais disponível naquela época ter sido o cachorro, (um animal de pequeno porte que era criado em rebanhos e comido ainda filhote), o grande luxo para a voracidade aristocracia daquela gente e especialmente para dias de festa, era o porco. E a matança era imensa e não parou mais. Claro que comiam também sapos, moscas, mosquitos, perus, tartarugas etc.


Deixei-o falar durante mais de cinqüenta minutos e voltei para casa convicto de que se o papo daquele pobre lunático tiver algum fundamento, a OMS e os coveiros que se prepararem, e muito bem, para quando cada uma das espécies (que foram e que continuam sendo devastadas por esta humanidade faminta) resolverem enviar-nos a conta. Se for o caso, - consolei-me - uma boa maneira de resistência pode ser aquela empregada pelas sete moças e os três rapazes florentinos (relatada por Bocaccio em seu Decamerão) que para fugirem da Peste Negra se refugiaram em uma casa de campo e lá ficaram, durante mais de mil e uma noites, parlando, parlando, parlando...


Ezio Flavio Bazzo

domingo, 26 de abril de 2009

Passagens para uma viagem quase metafísica


Mesmo àqueles que não são Deputados e nem Senadores e que, portanto, não dispõem de passagens aéreas para onde bem entenderem, quero sugerir – como antídoto para a exaustão e o cansaço com a poeira e com as banalidades do cotidiano – um roteiro nas nuvens. Um tour quase transcendente e quase metafísico que dura apenas uns vinte minutos e que para desfrutá-lo plenamente, nem é necessário enfiar as ventas na cocaína, queimar um baseado e muito menos engolir uma bala: o vôo das 05h10min horas de Brasília a São Paulo. Inclusive quem já sobrevoou as cordilheiras do Himalaia num aviãozinho sucatado sentir-se-a pleno e gratificado.


Sentar-se em jejum, impreterivelmente à janela do lado esquerdo da aeronave. Trinta minutos após a decolagem começam a surgir do negror da noite e do nada os primeiros sintomas da “viagem”. Conectar imediatamente os fotômetros ao cérebro e esperar. Primeiro apenas um fio alaranjado por sobre toda a extensão dessa terra infame. Logo em seguida uma faixa mais densa e um rastro escarlate de um extremo a outro do orbe, com o horizonte travestindo descaradamente seus pigmentos tradicionais. Círculos cromáticos e espécies de prismas que se formam sobre as pedras ao mesmo tempo em que as cores vão manchando as nuvens, adocicando os abismos e obrigando os rios a virarem espelhos. As montanhas se avolumam. Cada floresta e cada cordilheira ganham um formato indescritível. Feixes de fótons para todos os lados e tudo o que é visível se amplia de um segundo a outro geometricamente, sem explicação e literalmente do vazio enunciando a eminência incontrolável da alvorada por sobre os crânios de uma humanidade sonâmbula, mesquinha e inerte, confinada tanto em suas misérias pessoais, como em suas casinhas e cortiços retangulares, todos iguais, estandardizados e odiosos. As cores se concentram com mais vigor num determinado ponto do planeta e há visivelmente uma conspiração contra o preto e o branco. As teorias renascentistas sobre as cores ali não valem para nada. Mais uns instante e eis que está pronta a aurora. A antiga deusa grega do alvorecer explode jubilosa na retaguarda de um sol fulminante, idêntico a um maçarico, astro que ao mesmo tempo em que incendeia e ameaça tudo o que é terráqueo, se reflete inofensivamente nas asas metálicas e congeladas do avião. Daí para diante o espetáculo é o de todos os dias e pode ser visto por qualquer mortal, seja lá da janela de um ministério ou lá do claustro de uma fábrica.


Ezio Flavio Bazzo

sábado, 25 de abril de 2009

Guimarães Rosa e seus fanáticos mistificadores


Quem for à Biblioteca Central da UnB, ao entrar no saguão principal se deparará irremediavelmente com uma das mais esdrúxulas e anômalas frases de Guimarães Rosa escrita na parede branca de fundo. O funcionário da noite vendo-me ali visivelmente embasbacado lendo e relendo aquela bobagem, ofereceu-me uma caneta para que a copiasse em minha agenda recordando que - o mistificador e mistificado em questão - a havia escrito lá em seu Sertão e Veredas:

“Ali nem acabei de falar, e em mim eu já estava arrependido com toda a velocidade”.

Entendeu alguma coisa? Não?

Vou repeti-la:

“Ali nem acabei de falar, e em mim eu já estava arrependido com toda a velocidade”.

E agora? Entendeu alguma coisa?

Um estudante de zoologia que parecia estar sentindo mais ou menos a mesma indisposição e aversão que eu diante daquela locução, assegurou-me sarcástico: - Se eu fosse o Reitor desta universidade convocaria de imediato, não apenas o chefe da Biblioteca, mas inclusive o fraseador para explicarem-se.

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Vossa Excrescência me respeite


Depois da última peça de Moliere, o que mais me causou prazer nos últimos tempos foi assistir a briga de ontem protagonizada pelos Ministros do Supremo.
Enquanto assistia a troca de insultos entre eles e me deliciava com as manifestações incontroláveis daqueles corpos já senis, aconteceu um fenômeno mais do que paranormal comigo: sempre que eles usavam a frase Vossa Excelência, meu cérebro insistia em registrar Vossa Excrescência.

-Vossa Excrescência me respeite!
-Vossa Excrescência não compareceu à sessão!
-Vossa Excrescência está destruindo a justiça neste país!
-Vossa Excrescência não está lá no Mato Grosso entre seus capangas!
-Vossa Excrescência isto e Vossa Excrescência aquilo.
-Vamos interromper a sessão – interferiu outra das mais altas autoridades nacionais - pois Vossas excrescências estão exaltadas, e essa não é a liturgia de praxe desta casa. Foi um show.

Horas depois recebi um e-mail com esta recomendação: [No dia em que você quiser pisar duro no "amor próprio" de qualquer vagabundo, ladrão, marginal, filho-da-puta etc., não o chame de "vagabundo", nem de "filho disto" ou "filho daquilo", muito menos perca tempo descarregando o seu precioso repertório de impropérios em cima dele, pois ele vai rir na sua cara. Seja incisivo e abrangente: chame-o simplesmente de VOSSA EXCELÊNCIA!]

Ezio Flavio Bazzo

domingo, 19 de abril de 2009

SP - Nos Jardins da Babilônia


Como esta é a primeira vez que participo de um evento desse gênero achei prudente passar discretamente pela livraria umas duas ou três horas antes. Se houvesse um patíbulo montado na entrada - por exemplo - deixaria o Glauco e o Pietroforte chegarem antes. Mas tudo estava tranqüilo e sereno.

Fiquei indo e vindo pela Alameda Lorena no mesmo ritmo daquelas desoladas velhinhas, com seus cachorros.

-Quanto deve custar um apartamento por estes lados? Perguntei ao homem de terno azul marinho que fica ali na esquina da Padre João Manoel. Ele olhou-me com uma mistura de piedade e de compaixão e não respondeu.

Entrei no Café Suplicy. Guapequinhas simpáticos continuam passeando e defecando aqui e acolá sobre as pedras portuguesas, enquanto suas babas divagam.

Na vitrine da Roberto Simões um faqueiro com cabo de osso. Pensei que fosse marfim. Entrei. A dona loira conduziu-me a uma vendedora morena que informou o preço: 300 Euros.

-É osso de quê senhorita? – Perguntei.

Ela ficou atônita. Ia perguntar à patroa mas eu lhe poupei dessa indiscrição. A Sapataria do Futuro ao lado da Vie en Rose. Confundi o prédio preto da TNG com alguma coisa relacionada a TNT. A mulher tatuada da esquina queima incenso indiano à minha passagem. Diz que a fumaça e o aroma do Opium indiano favorece a fortuna, o amor e a paz. Made in Índia – insistiu. Associei de cara com os crematórios de Benares.

O Bazar de Aviamentos exibia um cesto repleto de calcinhas sobre o balcão. A vendedora surpreendeu-me com os olhos cravados naquelas peças e ficou inquieta como se tivesse deduzido estar diante de um xotólatra. Nas imediações da vitrine da Banana Price, 14 pares de botas pretas, salto alto, cano longo e com fivelas. Impossível não lembrar de Sade.

Encostei-me num poste frente a Nuit de la Passion e fiquei olhando a livraria de longe. Voltaria à noite ou tomaria um ônibus para Aparecida do Norte?

Se pelo menos recebesse um fax dizendo que Brasília está em chamas, que meu prédio ruiu e que a turba pisoteia meus livros...

As três palavras impressas no convite deste evento me angustiam: Transgressão, interdição e literatura.

Aqui entre nós: não é possível transgredir nada! O que comumente se rotula de Transgressão é apenas Regressão. Eu próprio sou um exemplo disso. Apesar das ficções que tecem a meu respeito, freqüentemente sou visto por minha companheira como um banana. As velhinhas da rua por pouco não me param para pedir uma benção, identificam em meus olhos e em meus trejeitos a alma de um rabino ou a personalidade de um padre. A propósito, não é por acaso que nós três, o Glauco, o Pietroforte e eu somos descendentes de italianos. Nascemos e crescemos naquele ambiente soturno e cheio de ícones repressivos. Nossa suposta transgressão é apenas um esperneamento sem fim e sem remédio.

Quanto à literatura, depois da Bíblia e de Paulo Coelho não se tem mais nada a fazer e nem a dizer sobre o assunto. Ele e a Bíblia sozinhos colocaram todos os pretensos escritores no chinelo.
Sobre interdição, apesar dos pastores da sociologia e da psicologia, apenas uma interdição social e cultural merece nossa atenção: a interdição do suicídio.

Um motoqueiro quase me atropela enquanto olhava para os 22 andares do Edifício branco que fica no número 1886 da Bela Cintra. Gostaria imensamente de morar num daqueles apartamentos com varandas de cemitério. Aproximei-me para saber se algum estava sendo vendido e descobri que se chama bizarramente Edifício Tucuna. O porteiro cordial informou-me que há sim um no primeiro andar. Preço: Um milhão e duzentos.

Se morasse no Edifício Tucuna poderia ir todos os dias à Trattoria Lellis que fica bem em frente e logo logo estaria gordo como um porco.

Fui subindo a Bela Cintra e passei por debaixo de uma faixa que dizia: FALE FRANCÊS, VIVA ESSA EMOÇÃO, para em seguida lembrar que 2009 é o ano da França no Brasil. Há uns anos atrás foi o ano do Brasil na França. Se vocês soubessem quantos crápulas ficaram ricos com aquele evento, não estariam aí tão serenos.

Já lá na Paulista, frente ao Banco de la Nación Argentina, três repórteres apontaram-me as câmeras querendo saber minha opinião sobre Os Direitos dos Consumidores. Neguei-me dizendo que era um turista tcheco.

Cansado, entrei na igreja da Paróquia São Luis Gonzaga, aquela que fica em frente ao Hotel Íbis. Logo de cara uma surpresa: ao lado de um pôster do Cristo ensangüentado um convite para a festa árabe beneficiente.

Silêncio sepulcral. Tirei o tênis e vi-me novamente tomado pela lembrança da tara do velho podólatra. Às minhas costas o cofre para doações, dízimos, ofertas etc., com um cadeado devidamente lacrado.

O mendigo que repousava num daqueles bancos estofados resmungou-me que se visse o padre iria pedir uma confissão, uma comunhão e até mesmo a extrema-unção.

Subi ao último andar de meu hotel achando que de lá poderia vislumbrar as lápides do Cemitério da Consoloção. O mausoléu imenso do Conde Matarazzo - por exemplo - ou o singelo do Monteiro Lobato.

Um dia ainda confessarei ao editor de meus livros que eu, com o maior prazer escreveria somente para os mortos.

São Paulo, 18 de abril de 2009 - 16:00 horas.

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A ANVISA avisa: atrás da cara cristã do agricultor pode se esconder um criminoso


Metamidofós, Endossulfam, Acefato e outros agrotóxicos proibidos há décadas em outros países estão transformando esta nação numa imensa enfermaria.

- Que tal uma sobremesa de morangos? 36% envenenados.
- Que tal um pimentão recheado à moda mexicana? 64% com venenos.
- Que tal um mamão para a prisão de ventre da vovó? Envenenado.

O abacaxi, a laranja, o tomate, a cenoura, a batata, a cebola etc, etc., tudo com dosagens mortíferas de veneno.

Apesar da inércia generalizada sempre é bom repetir que o grau de civilidade de um povo não se mede apenas pelo tamanho das filas de doentes em seus hospitais, mas principalmente pelo grau de sabedoria de seus produtores agrícolas e de seus cozinheiros. Entre nós, não é novidade para ninguém, estes dois setores estão relegados a analfabetos.

Ezio Flavio Bazzo

Brasília é uma festa


Você que mora aí nos confins do país tem razão sim em seguir acreditando que Brasília é uma Ilha de fantasia. O que você não sabe e precisa saber com urgência é que além das megalomanias explícitas do baronato local, existe também um rebuliço infernal de almas em desespero por aqui, desespero que interliga funcionários fantasmas à imprensa, às cirurgias criminosas, às inundações, ao viagra, às negociatas no Congresso, aos seqüestros relâmpagos e à cocaína, esse pó inocente que além de corroer o nariz da turba lota os ambulatórios de saúde mental. Também é bom saber que a dengue, a tuberculose e a lepra estão mais resistentes do que nunca aqui na Capital da República. Apesar da espionagem institucional sistemática e do policiamento abusivo há tiroteios, assaltos e homicídios praticamente na varanda do Judiciário e nas barbas da Lei. O Primeiro, o Segundo e o Terceiro graus competem entre si em fajutismo, as escolas são cortiços desconfortáveis e se cultua a ignorância por todos os lados, principalmente nas periferias que em nada se diferem das da Idade Média. Demências, aloprações e a inquietude hipocondríaca do rebanho diante da vida e das bactérias hospitalares… Na ante-sala dos médicos o poder das descaradas e demoníacas indústrias de medicamentos…

A máquina pública cada dia mais sonolenta… Covil e usina de melancolia… Uma grande família entediada pelo ócio burro e pela necessidade compulsória de cumplicidade entre os membros. Encubro-te e me encobres OK? Abraços, elogios, cochichos, troca de arranjos e de gratificações. Por mais modesto e suburbano que o sujeito pareça ser sempre têm um tio no Supremo, uma prima no Congresso, um familiar na Procuradoria Geral da República. Os carros impecáveis lotam os estacionamentos e as garagens. O aeroporto está sempre agitado e febril. Os vôos saem lotados todos os dias e para todas as direções. No saguão sempre se ouve alguém gritando no celular e se exibindo:

-Aqui é o assessor do Ministro tal! A secretária do Senador Y! O irmão do Líder do Partido K! O Coordenador do Programa Z!

Vão engravatados buscar um ofício ou um memorando no outro lado do país ou até no exterior. Ocultam-se nas desculpas das velhas e conhecidas “reuniões”, na balela das “consultorias” e nas famosas “supervisões” do nada.

A cidade está repleta de novos personagens. Cada governo traz os militantes de seu Estado e lhes dá uma chefia, um cargo, uma gerencia, uma aposentadoria, um DAS7. Já assisti esse ritual uma meia dúzia de vezes. Vieram os mineiros com o JK, os gaúchos com o Geisel, os cariocas com o Figueiredo, os maranhenses com o Sarney, os alagoanos com o Collor, voltaram os mineiros com o Itamar, os paulistas vieram em massa com o Fernando Henrique etc.

O Lula foi o mais eclético, trouxe gente de todo o país. E é engraçado ver esses neófitos apelidados de “gestores” chegando cheios de empáfia, arrogantes, repletos de sonhos, de autoridade e de pose, com a ilusão de que salvarão a pátria ou, pelo menos, a si mesmos, isto se souberem fazer “um pé de meia” enquanto dure o mandato de seu protetor. Alugam casas cinematográficas, camionetes, fazem academia, mudam o visual, fazem questão de conservar o sotaque, adaptam-se rapidamente aos novos salários, quase sempre cinco vezes maiores daqueles que ganhavam em suas províncias. Congestionam os cafés e os restaurantes caros e pagam por alguns pratos bem mais do que se pagaria por um similar em Paris. E não pensem que vão embora quando o governo muda. Não. Tornaram-se funcionários “estáveis” e chefões influentes. Nos quatro ou oito anos do governo que os trouxe, ganharam notoriedade e muito dinheiro, aprenderam o “caminho das pedras” e não saberiam mais viver lá no meio de seus iguais. Ficam por aqui, viciados ao poder, às grandes reuniões, às bajulações gratuitas e até juram amar esta cidade. Montam um negócio para suas mulheres e nos finais de semana vão aos Estados de origem visitar seus correligionários, fingir cidadania e honradez.

-Onde está o professor tal?
-Foi a Londres fazer pós-graduação…
-E a professora Y?
-Está em Genebra concluindo o doutoramento…
-E o diretor X?
-Está no exterior na reunião do J.16…
-Cadê o motorista do Ministro?
-Está estressado e foi à Caldas Novas repousar...

No trajeto que vai da Reitoria ao Restaurante Universitário duas ciganas com vestidos amarelos, sandálias armênias e lenços vermelhos na cabeça me propõem “la lectura de las manos”. Quase sucumbi à curiosidade de postar-me diante de um oráculo. Mas segui meu caminho como um samurai desvairado, logo atrás de um casal de estudantes de biologia que juravam e demonstravam um para o outro, em total deslumbre, que Brasília é uma grande festa.

Ezio Flavio Bazzo

sábado, 11 de abril de 2009

Histórias e estórias de paixão


Nesta “Sexta-Feira Santa” cruzei as montanhas goianas ainda de madrugada, com a neblina ocultando os barrancos e as pastagens para vir até aqui na cidade de Trindade ver o teatro da chamada Paixão de Cristo. Não, não pensem que descambei para a demência da fé, trata-se apenas de um interesse sócio antropológico.

Nem se compara ao ritual de Planaltina e muito menos ao de Pernambuco. Aqui tudo é de uma singeleza quase palpável, e por isso mesmo, talvez, mais real. Quando cheguei a Vía Sacra – que acontece ao longo da Rodovia Goiânia/Trindade - já estava na Quarta Estação que, por ironia, fica quase em frente ao Motel Faraó. A Quinta Estação, uns quilômetros mais adiante, fica em frente a uma fábrica de cerveja e a Sétima Estação, onde Cristo foi pregado à cruz, bem na esquina do Vip Motel. Coincidências – talvez demoníacas - que tentaram misturar o profano e o sagrado do começo ao fim da encenação. O sujeito que fazia o papel de Cristo tinha uns olhos profundos e melancólicos como se realmente tivesse sido vendido por uma bagatela e o pior, por um de seus mais queridos comparsas. Quando passou ao meu lado deu-me uma olhada como se eu fosse a reencarnação de um dos lacáios de Pilatos.

O que a mim chamava mais atenção naquele teatro metafísico era a convicção da turba que ia atrás do Cristo gritando: Morte! Morte! Queremos sua morte! Queremos sua morte! Uns pareciam realmente transtornados, sedentos por sangue e dispostos a matar alguém, outros, haviam tomado uns tragos e estavam apenas fazendo pândega, enquanto os que haviam sido contratados seguiam o script com mais sobriedade. O efeito de seus gritos, da música e da voz de um coroínha juntos sobre a platéia que se amontoava curiosa e sádica pelos barrancos da rodovia era visível. Os mais velhos, claro, choravam. Pareciam sentir os chicotaços que os sujeitos fantasiados de soldados romanos desferiam nas costas do nazareno. Os mais jovens, ficavam circunspectos. Apenas as bailarinas que se insinuavam executando a dança do ventre sobre um tablado pareciam imunes àquele clima emotivo. Aliás, esta foi a primeira vez que vi colocarem bailarinas e cortesãs com pouca roupa em cena no roteiro do calvário. Enquanto as fotografava veio-me à memória um texto de Lenin sobre a emancipação feminina onde ele afirmava categoricamente que a revolução não tolera estados orgiásticos.

Quanto aos dois ladrões que já estavam há mais tempo amarrados e ensanguentados em suas cruzes, ninguém parecia dar-lhes muita importância, afinal, quem é que não tinha um irmão, um pai, um tio ou simplesmente um conhecido no presídio de Goiânia ou mesmo em casa, já que neste dia muitos presos haviam se beneficiado com o indulto de Páscoa? Quando pulei o cordão de isolamento para fotografar os ladrões mais de perto, um adolescente meio alcoolizado aproximou-se para dizer-me: o nome do da direita é Renan e o da esquerda é Jader. Enquanto vou me acotovelando no meio da turba, travestido ora de fotógrafo ora de padre e enquadrando os mais fanáticos e mais exóticos em minha câmera vou pensando na tese de Lucy Brown, exatamente sobre a paixão, publicado no Journal of Neurophysiology: “Estado emocional geralmente marcado por uma dose generosa de irracionalidade e desejos incontroláveis, a paixão exibe um perfil neuronal semelhante ao de situações como sentir fome, ter sede ou ser viciado em algo, como jogar ou usar alguma droga. Isso ocorre numa área do cérebro dos mamíferos que toma conta das funções mais básicas e inconscientes, como comer, beber, movimentar os olhos".

Me distraí por uns momentos e quando percebi o Cristo já estava lá no alto da cruz travando um diálogo com a soldadesca. Depois lhe enfiaram uma lança no lado esquerdo do peito por onde escorreu um líquido cor de vinho que algum herege da multidão apressou-se em gritar que era mercurio cromo. Em seguida lhe passaram uma esponja molhada nos lábios, momento em que lançou uma crítica violenta e colérica contra seu Pai, por tê-lo abandonado à fúria da turba asquerosa, e morreu.

O cenário encheu-se de fumaça e de raios. Ouvi os soluços de uma senhora que levava uma sombrinha preta. Os soldados e os demais comediantes se colocam de joelhos, em silêncio, como se uma culpabilidade aterradora tivesse despencado sobre suas consciências.

Eram exatamente 13:30 horas. Um sol cancerígeno queimando as carnes daquela gente. Distraio-me novamente com a turba e quando volto a atenção para o cenário já estão baixando o corpo morto da cruz e entregando-o a uma mulher melancólica vestida de azul. Sua mãe ou Maria Madalena? No hotel consultarei o Google. Enquadrei o rosto doloroso daquela pobre mulher e a face ensanguentada daquele pobre homem. Aquela cena também todo mundo já estava careca de ver em seu cotidiano. Nesta guerra civil em que vivemos quem é que não tem um filho, um pai, um marido ou simplesmente um vizinho assassinado?

A imprensa falada, escrita e fotográfica se lança sobre a cena final como um bando de chacais… O padre agradece a presença de todos, mas principalmente aos colaboradores, aos patrocinadores, aos politicos influentes e aos beatos incansáveis que, durante séculos, não desistem de encenar, de graça e por pura desesperança, essa estória de luxúria e de horror.


Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Entre os Malas da Necromancia e o comércio da tanato-praxis


Na periferia, nas proximidades ou mesmo à sombra dos sessenta anos até mesmo a leitura cotidiana dos jornais passa a ser uma aventura insólita e de risco. Isto porque frequentemente nos deparamos estupefatos com a foto e o obituário de um amigo, de um vizinho, de um colega ou de um conhecido qualquer lá na página noir dos necrológicos.


Eu mesmo já experimentei essa sensação cinco ou seis vezes. O baiano e editor do jornal morreu aos 50; o diretor paranaense de uma troupe teatral aos 60; o psiquiatra tal aos 42, o dentista Y aos 40; o professor de desenho gaúcho aos 59 etc. Essa realmente é uma idade de risco, quase como uma granada sem pino ou como um balde de gasolina esquecido na toalete de um boteco. Um gesto em falso ou uma faísca e pronto. Tudo se vai para o beleléu. Por mais que se negue e que se disfarce, por detrás de grande parte das neuroses e das pirações cotidianas está à consciência exacerbada desse trágico destino e o furor silencioso contra a pena de morte a que se está irremediavelmente condenado desde o nascimento.

É à morte, mais do que a qualquer outra questão que se deve a maioria das idealizações e das ficções institucionalizadas: o poder, o dinheiro, a sexualidade, a fraternidade e a religiosidade – por exemplo. E os seres, de todas as categorias, não fazem mais do que transitarem alucinados e febris, durante suas míseras seis ou sete décadas, entre a vontade de acabar logo e a luta desvairada por longevidade e por eternidade.

Hoje em dia, além dos gestores da “Vida Eterna”, dos “Corretores da Ressurreição”, dos “Mercadores da Transmigração das Almas”, dos Malas da Necromancia etc., existem também os especialistas em tanato-praxis ou, em outras palavras, os técnicos no tratamento somático dos cadáveres e de seu armazenamento, técnica que substitui a velha prática religiosa de simplesmente jogar o cadáver na fossa de um cemitério e pronto.

Esses profissionais tratam o cadáver com o objetivo de restaurar-lhe certas características vitais e de conseguir sua conservação. Para isso se faz uma lavagem intensa nos tecidos, por meio de injeções nas artérias femurais, axilares e carótidas de um produto a base de formol, mercúrio, arsênico e chumbo. Este líquido, chamado thanatyl, que substitui o sangue e contém colorantes para pigmentar os tegumentos, provoca uma hidratação do cadáver que lhe dá um aspecto saudável (como se estivesse vivo) e impede o afundamento dos glóbulos oculares. Dizem que é necessário um litro de thanatyl para 70 kg de carne de cadáver. Todas as cavidades são submetidas a tratamentos cuidadosos. São praticadas punções nas vísceras abdominais e seu conteúdo é aspirado, de maneira que o cadáver fique livre de gases, líquidos e material fecal. Os propagandistas dessa prática são enfáticos em afirmar que um cadáver saudável e bem tratado pode durar vários meses...” Uma tanato-praxis sofisticada – leio no livro de Roger Bartra - consegue maravilhas nos cadáveres que apresentam deformações ocasionadas por acidentes, enfermidades da pele, câncer e outras mutilações. Existem tratamentos especializados para cadáveres de homens muito obesos ou de mulheres grávidas. Enfim, em casos especiais, com ajuda de fotografias do morto, o tanato-prático realiza autênticas reconstruções do que foi o cadáver em vida. Os tratamentos químicos são complementados com maquiage para esconder a lividez cadavérica e o escurecimento que o formol provoca. São praticadas pequenas suturas, injeções e próteses para corrigir o “rectus” da boca e o caimento das pálpebras. Qual a vantagem dessa prática? Ora, um cadáver assim, pode ser convenientemente chorado por seus familiares e amigos nas ultramodernas instalações que são os funerariuns em cujas instalações é levado a cabo o tratamento de conservação e de reconstrução que lhes poupa do espetáculo horrendo da putrefação da carne, O funerarium aloja os cadáveres de tal maneira que todas as antigas imagens de terra e de vermes são eliminadas. Ficam expostos em elegantes vitrines ou em cavidades nas paredes, no interior de edifícios de vários andares, com arquitetura moderna, amplos e cômodos salões atapetados para a exposição e o funeral, salões de recolhimento para os familiares que visitam a seu parente defunto. Um funerarium norte americano anuncia assim seus serviços: “para a dignidade e a integridade de seu defunto. O funerarium não custa mais caro. Acesso fácil, estacionamento privado para cem carros”. O projeto de um funerarium apresentado em 1976 por um arquiteto francês, para obter seu diploma, sugere um verdadeiro templo laico “lugar apropriado, provido de lugares e símbolos que facilitariam as condutas individuais e sociais diante da morte”. Voilà!!

Ezio Flavio Bazzo

sábado, 4 de abril de 2009

Il barbiere di Siviglia, Niemeyer e Gulliver


A longevidade do Oscar Niemeyer é uma prova cabal de que as pragas e as maldições não servem para nada... Do contrário, já não teríamos mais notícias nem de suas cinzas e muito menos de seus ossos.

Faço essa reflexão ao sair do Teatro Nacional Cláudio Santoro projetado, como quase tudo nesta cidade, pelo ilustre arquiteto Niemeyer. Pretendia ver Il barbiere di Siviglia até o fim nesta noite chuvosa de sexta-feira, mas não foi possível. O espaço entre uma cadeira e outra parece ter sido projetado para anões ou mesmo para os liliputianos. E nem precisa ser um ancião para sentir o sangue se coagulando nas curvas do joelho ou nas artérias que descem pelos calcanhares e nem para sentir as pernas inteiras amortecendo. Só uma múmia conseguiria estar ali quieta por mais de vinte minutos. A precária circulação sanguínea pelos pés faz a pessoa ficar procurando uma posição mais confortável e mais adequada durante a ópera inteira. Ou colocam-se os sapatos sobre o veludo da poltrona do lado ou se enfia o joelho na nuca do sujeito que está a nossa frente. Não dá para entender porque idiotices desse tipo ainda são edificadas. Tenho certeza que já em 1816, quando esta peça foi encenada por primeira vez, os romanos a assistiram num teatro muito mais espaçoso e em cadeiras muito mais confortáveis.

Qualquer camponês que tivesse sido consultado teria dito ao genioso arquiteto: Que as cadeiras possam ser inclinadas suavemente e que seu ocupante possa espichar ou cruzar as pernas, tirar os sapatos e ficar realmente à vontade. Do contrário, como vai concentrar-se no violino, na flauta e na mise-en-scene do maestro, doutor Niemeyer? Com a sensação de uma eminente trombose na altura das panturrilhas ou de que suas pernas já foram amputadas, como vai prestar atenção às flautas, aos oboés, aos clarinetes aos fagotes e ao violoncelo, senhor arquiteto? Como fará a tradução simultânea do canto de Rosina ou das intrigas do Fígaro, ilustre mestre do proletariado? Não, não é possível submeter-se gratuitamente a uma idiotice dessas, uma vez que cinqüenta por cento do prazer do espetáculo está perdido de antemão e uma boa parte da libido, até dos menos exigentes é contaminada por essa cólera legitima que explode em nossos nervos contra o sádico que orquestrou e executou essa câmara de tortura.

Por coincidência, o primeiro ato termina com alguém cantarolando fredda ed immobile... fredda ed immobile, como se estivesse fazendo referência às minhas e às frias e imóveis pernas da platéia. Poder levantar-se e sair cambaleante no meio da chuva foi a glória e a maior de todas as apoteoses.

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A felicidade e a corja do G20


Enquanto você está aí comendo seu churrasquinho de gato no fundo de um barracão, na fila da CEF tentando comprar um cortiço (em trinta anos) onde enfiar tua família ou simplesmente gastando a vida para ganhar a vida, a corja do G20 está novamente em sessão extraordinária. Agora em Londres, mas ontem foi em Roma, antes de ontem em Paris, NY, etc. Alguns estudiosos que conheço gostam de assistir e de analisar a premiação do Oscar na busca de uma explicação para a cretinice do mundo. Eu, sinceramente, prefiro essas reuniões do G20; as do Grupo dos 8; as do Mercosul; as dos Países Emergentes, dos Alinhados, dos Desalinhados etc. Sinto que ali posso identificar com mais facilidade os DNAS da gatunagem, da mentira, da hipocrisia, do poder delirante e mesmo do monarquismo travestido. E a canalhice não se resume no sujeito que aparece lá, enfileirado, sorridente e de braços dados com os outros 19. Não. O verdadeiro festim acontece com o pessoal que está na retaguarda. Cada um desses “estadistas” leva atrás de si uma corja, um exército, um batalhão de bajuladores, carregadores de malas, limpadores de botas, lavadores de cuecas etc. No mínimo trinta funcionários da diplomacia, parentes, amigos, lobistas, esposas, amantes, histéricos voluntários, médicos, psicólogos, uma mídia particular, massagistas, policiais, adidos disto e adidos daquilo e até padres. Muitos desses políticos gananciosos e salafrários têm horror só em pensar na hipótese de bater as botas sem receber a extrema-unção e sem tempo para pedir perdão. Lotam os hotéis cinco estrelas, os restaurantes e os cafés mais chiques, Fingem que estão sempre apressados, que são importantes que vão mudar as bases desta sociedade infame... E enquanto os que correm pra lá e pra cá com seus crachás, celulares e com seus computadores dão sustentabilidade ao teatro da sobriedade internacional, as madames deste ou daquele executivo vivaldino que conseguiu infiltrar-se na comitiva, chamam um táxi e vão à Oxford Street fazer compras. Os homens preferem ir à Jermyn Street e desbundam em gravatas, paletós, perfumes e lencinhos para a intimidade... Só voltam para o hotel quando a noite começa a cair sobre os arranha-céus e sobre o Tamisa, hora em que os lamentos do Big Ben se fazem mais audíveis.

Nas suítes, banhos, massagens, elogios mútuos, puxa-saquismo. Um champanhe para comemorar a fala de nosso chefe! Cumpliciam-se no engodo, no engano na adulação astuciosa e na mentira para amenizar a culpa pela gatunagem. Daqui a pouco é hora de cair na noite. Uns gabam-se de já serem freqüentadores antigos da boate Neighbourhood. Outros vão à Turnmills. A grande maioria bota um brinquinho e vai rebolando para a Egg. Um punhado de Euros no interior do paletó e o Cartão Corporativo embaixo de um copo.

Pois é, e você que está aí palitando os dentes depois de devorar teu churrasquinho de gato, não adianta espernear. Estes são os jogos legítimos e as manobras clássicas da República ou, se preferires, dessa monarquia dissimulada. Sim, a revolução francesa serviu para isto: travestir aquele circo neste.

Amanhece. Todo mundo está visivelmente feliz e encontram-se no café antes de reiniciarem o teatro lá no auditório do G20. Uma das madames com olheiras imensas recita para seu acompanhante esta frase de Samuel Johnson: - Acorda meu bem... “Quando um homem está cansado de Londres, está cansado da vida”.

Ezio Flavio Bazzo

Procuro cachorra de qualquer raça para relação fugaz


Tenho dois anos, sou um Lhasa Apso branco, dentes impecáveis, peso normal, me alimento com salmão e algas, tenho um latido potente e tomo banho em casa cada dez dias. Deixei de freqüentar os Pets porque percebi que os veterinários estavam querendo transformar-me num hipocondríaco e porque sempre voltava para casa com um ou dois casais de pulgas transitando por meu rabo. Posso dizer que apesar dos pesares, apesar dos 14 mil anos que estamos sendo obrigados a viver no interior da estrutura social humana, com redução cerebral e alteração de todos os sentidos vivo a maior parte de meus dias em estado Zen. Talvez não com a profundidade que viviam meus ancestrais tibetanos, mas quase. Cuido da casa onde vivo como se ela fosse uma réplica daqueles bangalôs encravados nas montanhas geladas do Himalaia. Meu único ódio é de um cachorro Labrador que mora aqui nas proximidades e que me atacou pelas costas sem motivo algum, e minha única angústia é a repressão sexual a que estou submetido. Com dois anos de idade e virgem! Isto é inadmissível! Não consigo arrumar uma cachorra com quem iniciar-me sexualmente. Em minhas caminhadas matinais e ao entardecer só tenho cruzado com cachorras problemáticas. Quando não são elas, são suas donas. Umas me mostram os dentes já de longe enquanto sua dona vai indagando: - é macho ou fêmea? Outras me deixam cheira-las e até lambê-las, mas quando menos espero me cravam os dentes encolerizadas. Outras foram esterilizadas, outras parecem múmias ambulantes, outras com fitinhas no pescoço e as unhas pintadas nem parecem de minha espécie. Na semana passada cruzei com uma cadelinha simpática e em cio, dei-lhe duas ou três lambidas e ela ofereceu-me de imediato seu tesouro, mas só até que sua dona, apavorada, uma daquelas mulheres abomináveis, arrancou-a bruscamente de meu alcance. Tão grande é meu atraso que já cheguei a cavalgar um poodle extremamente delicado achando que fosse uma fêmea. Ficou quieto, passivo e submisso até perceber minha pica cutucando seu traseiro. Então saltou vertiginosamente para um canteiro de bromélias e foi buscar socorro nas pernas de seu dono. Enfim, até agora nada. De todas as aberrações a que fomos submetidos até hoje nesse processo dito civilizatório, o mais grave para mim é esse aniquilamento de nosso instinto. Podem nos chamar de filhos, podem pintar-nos as unhas, nos colocarem fitinhas nas orelhas, escovar nossos dentes, limpar nossos ouvidos, lavar-nos com xampus, batizar-nos, colocar-nos para dormir entre as pernas de nossas donas, levarem-nos na coleira para lá e para cá, podem perverter-nos com todas essas frescuras neuróticas e fazer o que bem quiserem com nossa integridade animal, mas não podem privar-nos da sexualidade. E vejam que não estou sendo radical, muito exigente ou coisa parecida. Que nem estou exigindo uma Lhasa Apso com pedigree, para toda vida e com o aval da igreja e dos juízes. Não. Pode ser uma chihuahua, uma maltês, uma yorkshire, uma rottweiller e até mesmo uma guapeca dessas que acompanham os mendigos ou que dormem na porta dos açougues... e mais, apenas para uma relação fugaz...

Ezio Flavio Bazzo