quinta-feira, 11 de abril de 2002

O mito do escritor marginal


Palestra feita na Universidade de Brasília
a convite dos alunos de psicologia


"Não existe um grupo de jovens pelas ruas que não possa ser um grupo de criminosos. Não têm nenhuma luz nos olhos: seus traços são traços imitados de autômatos, sem que nada de pessoal os caracterize de dentro. A estereotipia torna-os pérfidos. Seu silêncio pode preceder um trépido pedido de ajuda ou uma facada. Os filhos que não se liberam das culpas dos pais são infelizes; e não existe signo mais decisivo e imperdoável de culpabilidade do que a infelicidade".

P. P. Pasolini



O convite para participar deste evento detonou inesperadamente em mim um surto de mau caratismo, uma neurose antiga e abominável, muito bem conhecida nos guetos acadêmicos e intelectuais, cujo principal sintoma é sempre o mesmo: a disputa pedante com uma platéia imaginária e por um Poder fictício.

Vi-me diante da tentação de assumir uma postura que não me pertence, de exibir um Texto e um Saber que não tenho, de armar-me até os dentes e de colocar-me num lugar de onde poderia derrotar facilmente as possíveis objeções contra minhas idéias e até mesmo contra meus desejos. Surpreendi-me várias vezes arquitetando um truque para parecer mais hábil e até mesmo MAIOR que qualquer um dos interlocutores, mesmo que para isto fosse necessário falsificar argumentos, burlar estatísticas, inventar referências e arrancar de minhas entranhas a lábia imbatível que os intimidasse para sempre e que os mantivesse imóveis e mudos aí em baixo, um metro e meio abaixo deste púlpito que, histórica e sabiamente, a tradição eclesiástica concedeu aos padres, aos professores e aos políticos. A esses irmãos siameses, empenhados há séculos em dar legitimidade às três clássicas e conhecidas profissões impossíveis: a de EDUCAR, a de CURAR e a de GOVERNAR.

Falaria espontaneamente? Mesmo correndo o risco de ser traído por meus instintos, de dizer um montão de bobagens infundadas e de ser ridicularizado pelo espírito maligno e justo que sempre atiça as platéias? Ou, matreiramente, ordenaria minhas idéias num roteiro em forma de jaula (como fazem os professores), para assim preservar minha integridade intelectual e garantir a imagem que quero que tenham de mim?

Sempre tive preconceitos com os palestradores que não palestram e com os vivaldinos das metodologias pós-modernas. Entretanto, depois que vi o próprio Chomsky, o Edgar Morin e outros pequenos deuses da atualidade, neste mesmo estrado, agarrados à duas ou três laudas, com os joelhos trêmulos e apertados um ao outro, fui relaxando e sendo mais condescendente com meus fantasmas e com minhas antigas exigências, baseadas muito mais numa idealização semi-religiosa e boçal do mundo, e muito mais num superego vil, do que no bom senso. Claro que se estivessemos numa Bolonha medieval ou numa Sorbone do século XIII, onde os professores eram escolhidos pelos próprios alunos, por sua sapiência e não por sua astúcia, uma postura destas me custaria não apenas a cátedra, mas também a honra. Aliás, quero lembrar que só concordei em vir expor-me aqui, deste jeito, porque o convite partiu dos alunos. Não porque acredite que eles sejam menos viperinos que seus mestres, mas por saber que ainda não precisam defender o Espaço Universitário nem a Práxis acadêmica com a obsessão de quem defende um dogma. Por outro lado, porque identifiquei na lógica desse convite, uma prática correta e saudável da Idade Média. Seria fascinante se voltassem a ser eles, os alunos, que escolhessem rigorosamente seus palestrantes, seus professores, seus peritos, seus orientadores, etc, como o era naquele tempo. E que não fossem, claro, recrutá-los apenas lá no interior das mesmas confrarias financiadas por organismos estatais ou multinacionais, nem que se deixassem impressionar pelos títulos ou pela quantidade das Cartas de Recomendação, memorandos, "pistolões" bilhetinhos, exibidas pelos pretendentes, mas sim pela maneira como dançam a vida, como saltam de uma corda à outra do trapézio em movimento e de como driblam as paranóias inevitáveis deste circo neurótico e de quinta qualidade que é a vida.

Quando tento entrar de vez no assunto que aqui interessa, me deparo com minhas limitações e com a dificuldade de esboçar até um simples retrato tanto do suposto "sujeito marginal", como da produção "supostamente naldita". E digo suposto propositalmente para insinuar desde já que, talvez, nem seja possivel ser MARGINAL, essa pecha pejorativa que os editores do século XVIII lançaram, com fins estritamente econômicos, contra àqueles autores que preferiam publicar eles próprios as suas obras. E digo suposto, - repito - porque qualquer um de vocês conhece a dificuldade de permanecer sem nenhum estatuto, à margem, do outro lado do arame farpado, além de um período curto e idílico, já que tudo neste planeta beato conspira para que sejamos, ou jogados terminantemente no lixo ou cooptados pela máquina da cultura.

E se por milagre o sujeito conseguir resistir a esse assédio por toda a vida (o que é quase impossível, uma vez que - como dizia Foucault - o anonimato literário não lhe é suportável), assim que bate as botas é rapidamente resgatado e reabilitado pelos abutres da literatura: um padre, um professor, um mestrando ou um mecenas qualquer. Então se torna lenda, folclore, um santo, um espírito benéfico ou maléfico que renderá dinheiro para alguém, mesmo quando constava em seu curricullum o diagnóstico de ateu, anarquista, anti-social, corsário, vagabundo, perverso sexual, mendigo, boêmio, cachaceiro, louco por xotas, delinqüente, autodidata, etc.

Pelo que já vimos até agora, tanto neste como em outros países, o tal "marginal" não é necessariamente um sujeito que diz NÃO para sempre ao Contrato Social, e tampouco aquele que cospe de forma irretroativa sobre os cânones principais do Estado, da Família, da Igreja e das outras imbecilidades estabelecidas. Sua marginalia (como tudo nesta sociedade presidida por rebanhos) é efêmera. Pensem em Rimbaut, se quiserem, ou em Baudelaire (que fingia querer dinamitar todos os pilares morais e sentimentalóides da época, mas que bastou adoecer, para voltar em frenesi para os braços da mãe). Pensem até no alquimista Paulo Coelho, se isto não lhes dá náuseas, que travestiu-se de marginal até que pode e que agora, de uns anos para cá, vem insinuando poderes sobrenaturais e acaba de ser agregado ao bando da Academia Brasileira de Letras.

Sim, o "marginal das letras" é um personagem que ganha visibilidade apenas num tempo determinado e limitado de sua trajetória. De um dia para outro, ou some naturalmente do mapa, sem deixar rastro, ou é absorvido e enrabado pela melancolia democrática.

Como todo farsante, descobre - ­como escrevia Pasolini - que é muito melhor ser inimigo do povo do que inimigo da realidade. Vai mudando de pele como uma serpente, ou como um calango, racionalizando seu retrocesso e sua metamorfose até que se deixa seduzir definitivamente por uma editora, por uma seita, por uma viúva, por um contracheque, por uma vaga num Departamento de universidade ou de Ministério, ou pelos elogios de um pederasta da mídia. Sucumbe à própria vaidade escamoteada e ao narcisismo que há décadas espreitava do fundo de seus complexos. Começa adocicar as palavras, preocupar-se com a gramática, fazer concessões, mudar o penteado, aparecer engravatado nas saturnais dos corruptos emergentes e pleitear uma cadeira entre a troupe senil que comanda há séculos a maioria dos banquetes. De Balzac a Lima Barreto. De Gregório de Matos a Leminsky. De Jean Genet e Samuel Rawet a Plinio Marcos, etc sempre a mesma ambigüidade e o mesmo flerte esquizóide com o Lixo e com o Luxo, como se trilhar à "margem" e na "contramão" da comédia social não fosse uma opção consciente nem um destino irrevogável, mas apenas um esnobismo neurótico experimental.

Mesmo assim, seria ridículo negar que produziram melhores obras aqueles que, por uma razão qualquer, foram banidos do sistema, cuspidos para fora da família, amaldiçoados por uma mãe histérica e por um pai asselvajado, excomungados, algemados, barrados na porta das universidades, rejeitados pelo mundo editorial, possuídos por uma ou outra forma de loucura. Sim produziram melhores trabalhos aqueles que encontraram na própria bílis a maneira mais cruel de exercer a denúncia, por um lado, contra a espécie abominável que é o homem e por outro, contra um mundo tão frívolo e tão pérfido.

Ezio Flavio Bazzo